terça-feira, 29 de junho de 2010

Centopéias Gramaticais

Um velho questionou-me uma vez, há muito tempo, algo de insubistituível valor. Creio que dias se passaram. Não, meses, talvez anos. Décadas ou séculos? Ah, pouco me importa, o que está dito está dito, o que está erguido não há de tombar. E as palavras; pequenas centopéias repartilhadas de segmentos de vogais e consoantes, tendo algumas patas mais tônicas ou acentuadas, ás vezes até mesmo com um mesquinho hífen intrometido, continuam a serpentilhar pelos emaranhados de minha massa cerebral. Ás vezes topam-se com alguns perdidos neurônios. Destes que cavalgam por aí em seus alazões invisíveis, em um desparar de vida-ou-morte. Quando o fato há de se ocorrer, o choque pode ser grande, até fatal. Inundam então toda a vasta extenção atraindo mais e mais rapazolas montados. Dali um evento se dá iniciado. Uma festa não seria o mais apropriado. Um debate talvez? Isto, um belo e inteligente debate. Porém, cada um daqueles jovenzinhos, guarda uma particularidade variada, no fim gerando em grande confusão. O debate se enaltece e no final, o que sobra, é apenas a bagunça, e aquele vasto cérebro que antes estava tão quieto, se torna em um borbulhar de cansaço, contaminado, pelas centopéias egoístas. Centopéias estas, que me relembro muito bem, visualizar deslizarem pela boca enrrugada daquele homem decrépito.

- Neste mundo meu caro, gosta-se daquilo que se quer gostar. Nossa mente tem a força de mover montanhas, de secar mares. Pois é ela, a grande portadora da imaginação. E o que mais são os sentimentos do que apenas ilusões mesquinhas de nossa mente egocêntrica? - Naquele momento pensei em como aquelas inúmeras gotículas de saliva que sobrevoavam minha cabeça podiam conter tanto impulso. De certo não queria prestar atenção no que o ancião proferia. Do que me adiantava, tão raparigo saber de sentimentos? Ouvi uma vez que são eles que dão forças à aquelas pestinhas de cem patas. Talvez sejam até eles que as colocam em nossa cabeça através de um buraco no canto esquerdo de nossa caixa toráxica. Mas, neste mundo há uma porção de regras. Regras estas que imagino se poderia escapar. Talvez não. Talvez sim. Mas aquele não era o momento. Como mais jovem, entre nossa diferença de seis décadas, resolvi dar-lhe ouvidos ao senhor a minha frente, mesmo que este não mais me aparentasse nada mais que um velho maracujá, já maduro demais.

- Você gosta de maçã? Pois se balança a cabeça como um não, lhe afirmo, não gostas por que não queres. Se desejasse gostar daquela maçã bem avermelhada, sentirias teu perfume no ar, e logo aprenderias a amá-la. O mesmo acontece com as pessoas. Gosta de sua mãe por que Ele lhe pediu? Ora deixe isto para os tolos. A você passo minha sabedoria. Quase sete décadas de aprendizado. Ninguém deixa de ser aluno, mas pode-se virar um professor. Como dizia, - pigarreou o homem. Um ato que me obrigara a causar certa careta de repulsa e graça contida. - não gostas de sua mãe atoa. Foi ela quem te deu carinho, quem te deu conforto. Mas fora você quem a aceitou. Quem viu que com ela, sua vida seria mais fácil. Mais fácil ainda serias se de fato amá-la. Por que não? Se obrigara então a isto. E então, dedicou-lhe-a toda sua confiança e pediu-a que tapasse seus olhos e enxergasse por você. Desde então, se ela lhe apontasse um homem qualquer na rua, e dissesse para odiá-lo, assim o faria, a não ser que tivesse outros motivos para tal. Percebes o que digo?

Naquele instante meu olhar de criança já não mais conseguia acompanhar o velho em seu discurso. Discurso que desde o começo mostrou-se um monólogo. Meus olhos sofriam com a pressão que aqueles finos e compridos cílios lhe causavam. Como ímãs que se atraíam, obrigaram-me a cerrar minhas pálpebras. Como imediata reação, minha boca se expandiu e um som gruniu da mesma. Estes eram os sinais de uma antiga e remota guerra, que dura até os dias de hoje. A guerra travada entre o sono, e a vontade de permanecer-se acordado. Pelo visto tínhamos um vencedor daquela batalha. O homem então retraiu as sobrancelhas, mas logo as amenizou. Afagou-me os cabelos e levantou-se de seu banco. - Durma meu jovem. Acho que só a vida será uma melhor professora a você. Sinto que não pude ser eu a te ensinar tudo. Durma, meu pequeno anjo.


Aquele senhor que no momento já me parecia um desconhecido, dêu-me um beijo na testa. Seus lábios secos com a idade me fizeram dizer algumas palavras inconscientemente. Imagino que tenha sido um "Boa noite, vovô". Não posso afirmar. Ali já estava entrando em mais uma fantástica viagem ao mundo dos sonhos, lendas, contos e mitos. A fantástica dimensão onde os monstros, anjos e princesas existem. Hoje, quando penso nisto, desejo com todas as forças que fosse possível viver lá. Ao menos, aquelas centopéias não me fariam tão mal. Pois lá, diferente daqui, eu optaria por torná-las verdadeiras, ou mera obra da falsidade.

Um comentário:

  1. Interessante escolher como referência uma centopéia... talvez por mesmo ela tendo 191 pares de pernas. Consegue andar em sincronia com eles.
    É mesmo bem interessante isso.

    Entre os argumentos do seu avô e o por que, fiquei um pouco confuso. Mas acho que foi intencional.
    Só queria saber por que o velho te questionou há tanto tempo. Ou se disse nos textos, fiquei perdido.

    Excelente escrita, btw.

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