sexta-feira, 1 de outubro de 2010

"Madame Butterfly"


O pincel serrilhado marcava o oshiroi. O pó espesso de farinha de arroz era levado à face. A pele aos poucos se tornava de um branco leitoso. Intenso. Artificial. Imortal. Depois era a vez do carvão em brasas, que deixava seu escuro rastro ressaltando não só as arqueadas sobrancelhas, como também os amendoados olhos asiáticos. As tão igualmente escuras orbes agora se voltavam ao beni. A pasta avermelhada de açafrão contrastava de forma violenta a mortificação branca do oshiroi. Aos poucos os ressaltados zigomas se enrubesciam intensamente, transmutando aquela fria e apática expressão pálida, em uma faceta tímida e inocente. O espelho era real e cruel. Nele estava estampada uma verdade um tanto dolorida. A beleza que ali estava, a que todos encantava, e que era fruto de tantos conflitos e disputas, nada mais era que uma máscara de maquilagem que encobria um rosto inseguro, bobo e sem nenhum grande atrativo.

Cansada de vislumbrar aquela certeza frustrante, a jovem cerrara os olhos e erguera-se do chão. Era hora de vestir algo que combinasse com aquele seu falso porte. Terminando a montagem de seu casulo, pôs-se para fora de sua casa. À porta, sua “tia” batera com duas pedras algumas vezes. O choque destas liberara algumas faíscas. O movimento era uma simbolização de desejo de sorte para a preciosa gueixa. A mesma deslizara pelas ruas japonesas, enfeitiçando os olhares ao redor. Em sua mente, um pensamento que fizera seus mínimos lábios em formato de coração se esgueirassem em um sorriso. Desejava em seu interior que a sorte a ela desejada pela mulher que chamava de tia fosse responsável por uma noite perfeita ao lado de seu amado. Sim, quando gueixa deixava-se apaixonar por um homem que entretia algumas vezes ao ano. O empresário visitava a cidade aproximadamente uma vez ao mês, e quando o fazia, quase sempre pedia pela presença de sua artista preferida.

A noite, como sempre, fora inesquecível para a bela jovem que, ao despedir-se do amado, não pôde mais conter o amplo sorriso. As palavras do homem não saiam de sua mente. “Daisuki”. Ele realmente lhe dissera isto. Então seu amor era correspondido. Só tinha que esperar mais dois meses e logo estaria em companhia dele novamente, e poderia se declarar.

Os dias se passaram, e a jovem continuava a esperar pela próxima lua minguante. Naquele dia, perdida em pensamentos, sua tia veio a ela e pediu-lhe que fosse até o mercado em busca de algumas especiarias. Com a ausência das jovens assistentes de sua casa, não pôde negar. Porém, no caminho de volta, decidira por passear pelos arredores. Postava-se agora em uma simples, mas belíssima, ponte de madeira sobre um singelo riacho. As cerejeiras à volta, lançavam ao ar pétalas de suas flores rosadas. Parte delas rodopiava ao vento em suas trajetórias elípticas, caindo sobre a límpida e cristalina água. Junto a elas, o reflexo de uma mulher. Os longos e lisos cabelos negros dela caíam-lhe a face. A pele branca e lisa contrastava com um olhar triste. Este insistia em comparar aquela feição com a face maquiada que comumente usava. Desejava ser tão bela quanto aquelas flores que desciam pelo córrego. Absorta em tais devaneios, não vira a noite atingir sua tarde, manchando o céu com uma preciosa lua cheia. Passara a pensar no empresário que em breve veria, e m sorriso espalhou-se por eu semblante. Porém, fora puxada de seu transe por uma voz grave e gentil.

- O que uma jovem tão bela faz a esta hora por aqui? – A voz vinha de um soldado. O rapaz trazia ao peito dois fortes braços cruzados.

Envergonhada, a gueixa tentou esconder sua desagradável feição, mas a gentil mão do militar a impediu, erguendo seu rosto pelo queixo. Seu toque macio era acompanhado de palavras doces e meigas. Elogios, admiração. A garota não conseguia entender como um homem daqueles poderia desferir tais coisas frente a uma mulher tão feia. Seu olhar de insegurança tomou novamente conta de sua face.

- Oh não! Não estrague tão belo rosto. Não percebes que é seu sorriso e confiança que lhe torna tão graciosa quanto estas cerejeiras que nos rodeiam?

Amedrontada, pôs-se a correr para bem longe. Porém, por mais que o fizesse, não poderia fugir de tais palavras. Palavras que lhe causavam algo que antes, só a maquilagem conseguira. Confiança. Com um sorriso marcando-lhe a face, correu pela cidade. Então notou algo. Os olhares das pessoas prendiam-se a ela, e não era por estar correndo. Prendiam-se por admiração. Assim como quando adentrava sua máscara por baixo dos luxuosos quimonos. Seu olhar então se voltara a sua imagem refletida em um espelho frente a uma simples loja. Seu sorriso ainda estampado, causou-lhe surpresa. Quem era aquela mulher maravilhosa frente a seus olhos? Mais bela que a gueixa que sempre via. Talvez, por que naquela, existia de fato a confiança e a alegria verdadeira, e não o falso ego da outra. Fora ali que percebera que, a lagarta que sempre se escondia no casulo das maquiagens, quimonos e em todas as suas habilidades que lhe foram impostas, estava pronta para liberar suas asas.

Naquela noite, deixara de lado a espera pela lua minguante, e passara a adorar a lua cheia, pois era esta que se assemelhava a ela agora. Uma lua completa. Voltara a encontrar-se com o soldado, e aos poucos, percebera que as palavras de seu empresário nunca conseguiram completá-la, por que não se dirigiam a ela, e sim a boneca de porcelana que ela apresentara a ele. O “Daisuki”, aos poucos fora sendo substituído por uma declaração muito mais forte vinda de seu soldado. “Aishiteru, cho-cho”.


"Quero deixar bem claro que, o futuro desta gueixa não fora o mesmo de Madame Butterfly, e que fora escrita antes mesmo de eu tomar conhecimento da mesma"

Um comentário:

  1. Mais umas vez estou admirado pela sua capacidade de construir cenas perfeitamente detalhas através das palavras em minha mente. Parece intimamente perceptível o ar de melancolia e superação traduzido pelo texto, allém de todo provérbio de muitos ensinamentos japoneses. O texto é realmente lindo, parabéns, Rafa.

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